segunda-feira, 7 de julho de 2008

Os currículos ocultos no aprendizado de vôo livre.


Primeiramente é preciso reiterar que o texto a seguir não tem a intenção de nortear procedimentos; é sim, um material que pode e deve ser aproveitado por àqueles que querem praticar uma instrução de parapente melhor e mais efetiva.
Tenho estado durante os últimos 5 anos envolvido no processo de facilitação de aprendizado de adultos. Tenho orgulho de já ter participado da formação de milhares de pessoas e creio, sinceramente, que a educação é saída para grande parte dos males que afligem a vida social atualmente. A estes com quem mais aprendi do que ensinei, eu agradeço imensamente.
Hoje vou me aventurar por uma área na qual meu conhecimento é muito genérico e empírico: a instrução de parapente. Vôo desde maio de 1995 e naturalmente, venho observando como as coisas acontecem no meio. Por outro lado, tenho alguma experiência na formação de adultos que me parece perfeitamente aplicável no vôo livre.
Já em 1902, o pedagogo John Dewey se referia a uma "aprendizagem colateral" que ocorreria simultaneamente ao currículo explícito. A esse processo posteriormente foi dado o nome de currículo oculto. Quando se fala em Currículo Oculto, obrigatoriamente nos referimos ao ambiente de aprendizado como transmissor de uma ideologia não explicitada nos programas.
O caso é que nem sempre o conteúdo explícito em todas as áreas(o currículo propriamente dito) é a única nem a mais importante referência no processo de aprendizado.
O currículo oculto corresponderia ao funcionamento normal das escolas; o que há de mais evidente comum e tradicional: aquilo que já se tornou tão familiar que já não nos chama mais a atenção. Os principais transmissores do currículo oculto são aqueles que intervêm no aprendizado como os Monitores e pares de aprendizado, mas principalmente os instrutores.
Un instrutor que é justo, honesto, assíduo e pontual, que não se acha o único nem o mais importante ensina por si, só por ser assim.
Aquele que é capaz de "desistir" de uma aula previamente preparada em prol de uma conversa, esse ensina duas vezes.
O que não tem medo de se expor como pessoa pode ensinar mais do que mil livros e milhões de teorias.
Aquele que não admite elitismos tolos, frases racistas, diferenças de gênero e é capaz de explicar sua posição, esse vale por um tratado inteiro de pedagogia.
Ao contrário, o que chega sempre em cima da hora, que atende o celular durante as aulas, que tem tiradas cínicas (essas sempre facilmente identificadas pelos alunos, creiam), que nunca está disponível fora do horário previamente definido, que fala daquilo que não acredita e acaba por demonstrar isso nas suas práticas, este desensina mais do que ensina.
Alguma ligação com o ensino de parapente?
O Instrutor que vende equipamentos inadequados para um aluno, ou que se acha o maior portal de sabedoria do universo, assim como aqueles que vivem pregando uma coisa e fazendo outra mesmo que seja nas sutilezas das tiradas cínicas, os que nunca têm tempo para os alunos pois vivem muito ocupados na rampa para um papo com os preás, estes contribuem muito para a formação do currículo oculto.
Àqueles que falam de segurança exaustivamente, mas banalizam a morte de um companheiro de esporte, saibam que estão perdendo tempo. A postura oculta nesse caso "ensina" muito mais que a retórica e a técnica.
A prática de formação de conhecimento é algo muito sério em todos os campos. Mais ainda em uma seara onde a integridade física das pessoas dependem daquilo que é retido no processo de aprendizado como o vôo livre. Existe uma diferença entre o que é ensinado e o que é retido - é a isso exatamente que se refere o currículo oculto.
Abramos os nossos olhos de ver, para que um dia a nossa consciência não nos cobre um preço demasiado alto...

-Referências ao texto " O (meu) currículo oculto" de Carmo Cruz, Professora do Departamento de Pedagogia da Universidade de Lisboa.

10 comentários:

Anônimo disse...

Sábias palavras...mas acho que antes de qq ensinamento o que deve ser colocado ao aluno é o risco real da atividade aerodesportiva em voga: RISCO DE VIDA, OU MELHOR, DE MORTE!!! Pra que todos saibam no que estão se metendo...vejo a serra repleta de alunos, todos olhando pro céu e se esquecendo do CHÂO!!!

Claytim.

Anônimo disse...

O processo de aprendizagem no voo livre é gradativo e depende de varios fatores.Instrutor,companherismo,meio em que se voa.Esses fatores irao determinar com o passar dos voos a caracteristica principal de cada piloto.O problema maior é que a prepotencia e arrogancia e a soberba tomam conta muito rapido de alguns seres humanos, fazendo com que a sindrome de "Super homem" aconteca e comecemos a banalizar os riscos e situacoes, por melhor e mais dedicado que seja o instrutor.A Lei da gravidade é igual para todos!Abracos, Heman Jr- Hemanzinho

Junie disse...

Amigo Claytim
É uma grande verdade o seu comentário. E essa situação é um currículo oculto. Pelas entrelinhas Lê-se que o processo não é verdadeiro, já que se parte de um princípio falso. A lição de aprendizado que resta nesse caso é aquela que se mostra diariamente: um monte de coisa séria sendo banalizada.
Um abração

Junie disse...

Amigo Heman,
Concordo com o que vc comentou. Acrescentaria somente que o processo pédagógico de aprendizado é mais complexo do que se imagina e muitas vezes depende menos da técnica do que da postura moral é ética do instrutor.
Um abração

Anônimo disse...

Caro Junie, como sempre você traz um excelente texto que nos faz (re)pensar nossas atitudes e procedimentos, principalmente dos que se enveredam pelos caminhos da instrução de parapente.

A correta instrução passa pela "desconstrução" da imagem do "super-instrutor", o que sabe tudo, o que se impõe e prevalece. A relação instrutor x aluno tem de ser estabalecida de maneira franca e sincera, tendo o instrutor a obrigação de colocar-se como um FACILITADOR DO APRENDIZADO, uma ponte para atravessar o "abismo" entre a terra firme e o maravilhoso céu azul. Quando agimos assim, criamos um vínculo tenaz e duradouro com o novo voador, que saberá "reter" muito mais e com certeza ficará menos ansioso em pular etapas e potencializar o risco inerente ao esporte, podendo alcançar proporções trágicas e mortais.

O aluno é o reflexo do seu instrutor. Cabe aos instrutores a constante evolução pessoal e auto-monitoramento, excluindo (e não mascarando) comportamentos e atitudes não-positivas, tanto no ensino do parapente como no convívio social, principalmente dentro da comunidade dos alados.
O instrutor que compreende melhor a si mesmo tende a compartilhar seus dons e conhecimentos de maneira mais eficaz, principalmente com aqueles que vêm "beber" na sua fonte.
Dicas de Leitura: Liberdade Para Aprender - Carl Rogers e ESPORTES DE AVENTURA E RISCO NA MONTANHA: UM MERGULHO NO IMAGINÁRIO - Vera Lucia de Menezes Costa

Grande abraço a todos

Luciano Azeitona Miguel Martins

Junie disse...

Grande luciano Azeitona,
O teu comentário é um exemplo de como deve se dar o processo de construção de conhecimento (o construtivismo pedagógico).
O currículo oculto é uma realidade em todos os campos do processo de construção de conhecimento e não podemios subestima-lo. Ele as vezes "ensina" mais do que o currículo explícito.
Uma curiosidade: a palavra ALUNO vem do latim SEM LUZ. Será que um processo de construção de conhecimento pode começar com alguém na posição de SEM LUZ?
As palavras tem muita força...
Um abração a vc!

Anônimo disse...

Belo texto para se refletir Junie.
Mas como voce disse na sua resposta ao Claytim,"um monte de coisa séria banalizada", me lembrei de um vídeo no fantástico da Viviane Mose (http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM568416-7823-SER+OU+NAO+SER+ETICA+X+INDIFERENCA,00.html), que mostrava exatamente essa banalização. E o que mais vemos hoje nas rampas é isso banalização dos processos, das condutas, da segurança, e por ai vai. Já presenciei algumas arborizadas na rampa, e apenas alguns se prestarem a ajudar, enquanto muitos já colocavam sua vela no lugar de qem estava lá no mato, literalmente.

Abraços Junie, e bons voos.

Jessé Fernandes

Junie disse...

Oi Jessé,
Essas posturas a que vc se refere e que infelizmente não são exclusivas do seu point de vôo, são os efeitos mais evidentes do currículo oculto. A banalização ocore na maioria das vezes pq o instrutor e todos os outros envolvidos no processo de aprendizado já banalizavam esses acontecimentos na formação.
É preciso que as pessoas se atentem para as mensagens ocultas que estão contidas nos pequenos atos; esses as vezes ensinam (ou desensinam) mais do que um livro inteiro.
Um abraço a vc!

Anônimo disse...

Amigo Junie, bom texto esse.
Daqui algumas vidas, no caminho da evolução, a humanidade vai ser outra.
Por enquanto é lapidar, lapidar, principalmente a si mesmo :-)
abração
Mauro Laraia

Junie disse...

Grande amigo Maurinho,
Saudades docê cara...qdo vem pras bandas de BH? Agosto tem o Brasileiro (23 a 30). Aparece!
Acho que vc tem toda razão. O caminho é o de burilamento pessoal. É fácil querer pros outros aquilo que a gente ainda não conseguiu pra gente... :-D
Um abração procê, pra Mirinha e pras "crianças" (num deve ter criança nenhuma mais aí né? rsrs)